
Certa Manhã Acordei de Sonhos Intranquilos - Otto
Pernambucano verbaliza sua dor e faz disco excepcional
Para mim, Otto sempre foi um daqueles casos usuais de potencial mal explorado da música brasileira.
Após um disco de estreia fabuloso (Samba Pra Burro, de 1998), o ex-percussionista do Mundo Livre S/A ganhou a simpatia da crítica especializada e se tornou o queridinho de MTV e afins, sendo louvado por qualquer suspiro que soltava.
Os dois albuns seguintes refletem esse período de fascínio por si mesmo. Tanto Condom Black (2001) quanto Sem Gravidade (2003) são trabalhos rasos, sem o apuro apresentado em Samba Pra Burro. E o especial MTV Apresenta (2005) se mostrou um acidente desagradável.
Então, foi com um prazer inigualável que esbarrei, ouvi e me emocionei com Certa Manhã Acordei de Sonhos Intranquilos. O músico pernambucano não só conseguiu fazer seu melhor disco, mas também o melhor álbum de rock/pop/MPB de 2009, sem dúvida.
Pode conferir. O que foi lançado este ano que transpirou honestidade, poética e inventividade e ainda homenageou as raízes da música brasileira? Nada.
Pois é justamente isso o que see ouve nas dez faixas de Certa Manhã..., um disco tão pessoal e fincado na dor da perda que em alguns momentos até parece um diário do artista - vale registrar que o disco foi lançado após o fim do relacionamento do músico com uma conhecida atriz global, com quem teve uma filha, e da saída da gravadora Trama.
Poesia e Dor - Produzido pelo músico em parceria com o amigo Pupillo, baterista e percussionista da Nação Zumbi, o disco batizado com uma referência à A Metamorfose, de Franz Kafka, é recheado de letras intimistas e até mesmo chocantes - não espere formatos tradicionais de composição nem versos comportados.
Já na abertura, Otto mostra a que veio: Há sempre um lado que pesa e outro lado que flutua/A tua pele é crua, é crua, canta em Crua, canção visceral que remete a sexo e traição - Mas naquela noite que eu chamei você, fodia, fodia/De noite e de dia, completa. E o arranjo de violinos é extraordinário.
Em 6 Minutos, a frustração de planos e a separação permeiam a canção áspera. Isso é pra morrer, 6 minutos/Instantes acabam a eternidade/Isso é pra viver, momentos únicos/Bem junto, na cama de um quarto de hotel/E você me falou de uma casa pequena, com uma varanda, chamando as crianças pra jantar/Isso é pra viver, momentos únicos/Bem junto na cama de um quarto de hotel.
Participações mais que especiais - Da primeira à última canção, a guitarra marcante e setentista de Fernando Catatau, da banda Cidadão Instigado, pontua o álbum com um tom retrô e ao mesmo tempo moderno.
Lafayette, tecladista dos tempos da Jovem Guarda, dá o ar brega a Naquela Mesa, regravação do sucesso de Sérgio Bittencourt e Nelson Gonçalves. A canção havia sido gravada para a trilha sonora de Árido Movie, filme do cineasta pernambucano Lírio Ferreira, de 2006.
Nos vocais a ajuda foi maior. Logo na segunda faixa, Leite, a paulistana Céu divide os vocais com o pernambucano, numa das canções mais carregadas de versos fortes - O leite derramando sobre a natureza morta me choca, me choca, me choca/Quando eu perdi você, ganhei a aposta.
Lirinha, vocalista do Cordel do Fogo Encantado, entoa versos belissimamente contidos em Meu Mundo - uma boa surpresa para quem se incomoda com o jeito "um tanto" espalhafatoso do artista.
Mas é com a particiação da mexicana Julieta Venegas na clássica Lágrimas Negras, de Jorge Mautner, e em Saudade que as parcerias atingem o ápice do disco. As duas canções se complementam perfeitamente, parecendo até terem sido escritas paralelamente.
Agora Sim fecha o álbum com maestria. Como alguém que parece ter lavado a alma ao por pra fora suas dores, Otto canta mais calmo e positivo Agora sim um saci/Agora são dois irmãos/Agora posso correr/Agora preste atenção. Finalizando com Quem disse que o amor não vai, não vai, não vai não?
Certa Manhã... não só consolida aquele artista que prometia e não cumpria como um dos grandes nomes da música brasileira, como também estabelece um bom ponto de inspiração à nova geração da MPB - e isso é muita coisa.
Parabéns, Otto, parabéns.
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